Ano Internacional da Astronomia - Dia 365 "Astronomia na Obra de Camões"
Félix Rodrigues
Introdução
O Professor de Matemática da Universidade de Coimbra, Luciano Pereira da Silva, publicou entre 1913 e 1915, na Revista da Universidade de Coimbra, um estudo intitulado “A Astronomia de Os Lusíadas”, que rapidamente se esgotou. Mais tarde, em 1972, houve uma reedição desse trabalho que também esgotou. Essa obra, está neste momento disponível on-line no sítio do Instituto Camões (http://www.instituto-camoes.pt/cvc/bdc/pensamento/astronomialusiadas).
Na “Astronomia de Os Lusíadas” analisa-se, de modo sistemático, as referências astronómicas do Poema e esclarecem-se os seus aspectos astronómicos, mostrando que ‘Camões tinha um conhecimento claro e seguro dos princípios da astronomia, como ela se professava no seu tempo’ e deduz que as ideias astronómicas de poeta são as do texto de Sacrobosco, com as modificações contidas nas notas de Pedro Nunes no Tratado da Sphera de 1537.
Em 1998, o astrónomo brasileiro Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, publica um livro intitulado “A astronomia em Camões”, onde descreve a visão do universo no momento da composição da grande epopeia lusitana e questiona as fontes bibliográficas e outras de que se serviu o poeta para a elaboração do monumento máximo da língua portuguesa.
Entende-se que as referências astronómicas de “Os Lusíados”, escritos em 1572, reflectem uma visão aprofundada da astronomia da época, com elementos astrológicos característicos dos interesses das cortes europeias renascentistas. Assim, Camões tem uma visão medieval Cosmogónica do mundo, que ainda não incorporou os elementos da revolução Coperniana, que pretende colocar o Sol no centro do Universo. Essa visão Cosmogónica de Camões abrange as diversas lendas e teorias sobre as origens do universo de acordo com as religiões, mitologias e ciências, através da história. Camões é sem sombra de dúvida, na sua época e fora dela, um homem culto, possuidor de conhecimentos vastos em diversas áreas do saber.
A descrição do Universo, feita por Camões na estrofe 89 do Canto X, parece ser uma descrição da ilustração presente no Atlas Catalão do século XIV. Assim a astronomia em Camões é uma astronomia medieval semelhante à de Abraão Cresques, autor do Atlas Catalão que, tal como era tradição na época, colocou nos mapas que produziu informações geográficas, históricas e mitológicas. Na figura seguinte apresenta-se a ilustração do modelo ptolomaico do universo presente no Atlas Catalão.
É especialmente no último Canto de Os Lusíadas, quando a ninfa Tétis mostra a Vasco da Gama a Máquina do Mundo, que a visão medieval ptolomaica do Universo transparece lúcida e claramente na obra de Camões.
Organiza-se este trabalho, tentando demonstrar que Camões possuía uma grande paixão pela astronomia, que nessa época se confundia com a astrologia, a que se seguirá uma tentativa de demonstração de que os conhecimentos astronómicos de Camões eram precisos e profundos. Apresentar-se-á também uma descrição sucinta dos modelos medievais do Universo, com ênfase para o modelo Ptolomaico. Por fim tentar-se-á interpretar algumas estrofes de Os Lusíadas do ponto de vista do modelo epistemológico astronómico renascentista vigente.
O livro “Os Lusíadas” em exposição nas comemorações do Ano Internacional da Astronomia, no Museu de Angra do Heroísmo.
Os Lusíadas expostos, propriedade de um particular, ao que tudo indica pertenciam à rainha Dona Amélia. Foram editados em 1891 pela Livraria de António Maria Pereira, sita na Rua Augusta números 52 a 54, em Lisboa.
Esses Lusíadas de pequeno formato (11 cm), tem uma Nota Introdutória de Innocencio Francisco da Silva, datada de 12 de Abril de 1874. Innocencio Francisco da Silva foi um célebre e douto bibliografo que viveu entre 1840 e 1919.
Essa é uma edição, cuidadosamente revista e conforme a de 1572, precedida de uma biografia do poeta, também da autoria de Innocencio Francisco da Silva, seguida de um dicionário dos nomes próprios, históricos, geográficos e mitológicos, que se encontram no poema, adornada com o retrato de Camões, e com uma estampa do padrão levantado por Vasco da Gama em Melinde. Tem uma encadernação em couro.
Paixão de Camões pela astronomia
Na Elegia I, Camões alude, sem paixão, à vida aventurosa de guerreiro, apenas aspirando a vida bem-aventurada dos pastores de ovelhas, não como uma vida desprendida de preocupações ou bens materiais, mas como aquela que permite estudar e conhecer os fenómenos naturais, dando aí ênfase à astronomia. Segundo Camões, é ditoso aquele que alcança “as causas naturais de toda a cousa”, ou seja, aquele que percebe e interpreta os fenómenos físicos, como a formação da chuva ou da neve, os efeitos do sol na terra, a reflexão da luz solar pela Lua ou o seu próprio movimento.
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Ditoso seja aquele que alcançou
poder viver na doce companhia
das mansas ovelhinhas que criou!
Este, bem facilmente alcançaria
as causas naturais de toda a cousa:
como se gera a chuva e neve fria;
os trabalhos do Sol, que não repousa;
e porque nos dá a Lua a luz alheia,
se tolher-nos de Febo os raios ousa;
e como tão depressa o Céu rodeia;
e como um só, os outros traz consigo;
e se é benina ou dura Citereia.
Bem mal pode entender isto que digo
quem há-de andar seguindo o fero Marte,
que traz os olhos sempre em seu perigo.
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A pergunta, como se gera a chuva e a neve fria? Não é de resposta simples nem tem nada de “naif”, pois só muito recentemente se entenderam essas questões. Para se formar a chuva é necessário que haja vapor de água suficiente na atmosfera, núcleos de condensação de nuvens em suspensão (partículas finas com diâmetro aerodinâmico inferior a um micrómetro) e ocorra um arrefecimento adiabático. Para se formar neve é necessário a presença de núcleos de condensação de gelo.
Quanto à questão pela qual o Sol não repousa, essa resposta só foi dada convenientemente por Newton, ao enunciar a lei da Inércia no século XVII.
Essa aspiração não é tão nítida como no poema anterior, mas é recorrente na Elegia III, quando refere que Ovídio, desterrado e saudoso da família, como para tentar esquecer o infortúnio:
“…..
O curso das estrelas contemplava,
e como por sua ordem discorria
o céu, o ar e a terra adonde estava.
Os peixes pelo mar nadando via,
as feras pelo monte, procedendo
como seu natural lhes permitia.”
Nesse poema há uma grande aproximação do poeta ao mundo natural, no sentido a que hoje chamamos de ambiente. A contemplação de Ovídio, prende-se com o entendimento dos céus (astronomia), o movimento da atmosfera (física) e o comportamento animal (biologia).
No soneto CXLII das Obras completas de Luiz de Camões, publicada pela Imprensa Nacional em 1961 (Vol II) e 1981 (Vol III), o poeta refere o peito casto da Lua e dos dons que o céu distribui pela humanidade. Nesse soneto, pode não ser nítida a paixão de Camões pela astronomia, mas é claro o respeito que o poeta tem pelo firmamento e pelas “virtudes” que os astros encerram, numa perspectiva próxima da astrologia.
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Diversos dões reparte o Ceo benino,
E quer que cada huma alma hum só possua;
Por isso ornou de casto peito a Lua,
Que o primeiro orbe illustra crystallino;
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Na idade média, e mesmo no Renascimento, a astronomia e astrologia andavam de mãos dadas. É clara essa ligação no poema anterior, especialmente no verso “Diversos dões reparte o Ceo benino” numa referência clara aos efeitos benignos dos astros que só tem sentido astrológico. Quando Camões refere o primeiro orbe ou primeiro céu, está afazer uma referência clara ao modelo geocêntrico de Ptolomeu e à orbita que a Lua aí ocupa. A mesma alusão é feita nos Lusíadas quando Camões se refere á Lua como «Planeta que no céu primeiro habita» e que marca com rigor o tempo da viagem de Vasco da Gama através das suas fases: «agora meio rosto, agora inteiro» (V, 24).
A personificação da Lua, e uma alusão clara às suas fases, tal como na estrofe anteriormente citada aparece também no soneto CCLI das Obras completas de Luiz de Camões, através de um elogio à personalidade que este astro encerra.
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Nella e nelle achei sempre a mesma lua,
Em quem nunca se viu outra firmeza,
Que não seja a de ser sempre mudável.
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Tal como se referiu anteriormente, no tempo de Camões, astronomia e astrologia confundiam-se, acreditando-se que o destino de cada um estava escrito nas estrelas. Essa sina, destino ou fado, ditada pelas estrelas é nítida no Soneto V das Obras Completas de Luiz de Camões.
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Mas minha Estrella, que eu ja agora entendo,
A Morte cega, e o Caso duvidoso
Me fizerão de gostos haver medo.
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Em Portugal, a astrologia esteve muito em voga no tempo de Dom João I. Os principais eventos da história eram acompanhados pelos comentários dos astrólogos. Desse modo, a morte da rainha Dona Filipa de Lencastre, precedida de um eclipse do Sol, foi descrita pelos cronistas da época. Por ocasião da coroação de Dom Duarte, em 1433, o médico e astrólogo real Guedelha (Guedalia) solicitou ao jovem rei, que também se ocupava de estudos astronómicos, que adiasse a cerimónia uma vez que a posição dos astros lhe era desfavorável. O rei recusou e, por uma dessas coincidências inexplicáveis, o reino de Dom Duarte foi curto e infeliz. Em 1438, a morte do rei, fez com que o grande regente D. Pedro ordenasse ao mesmo astrólogo que dirigisse o coroamento do jovem Afonso V de modo a evitar os eventos desagradáveis como os que haviam ocorrido anteriormente durante o reinado de Dom Duarte.
Será apenas uma figura de estilo de Camões quando afirma nos Lusíadas que a coroação de D. João I estava “marcada” nas estrelas (Canto IV, Estrofe 3)?
.....
"Ser isto ordenação dos céus divina,
Por sinais muito claros se mostrou,
Quando em Évora a voz de uma menina,
Ante tempo falando o nomeou;
E como cousa enfim que o Céu destina,
No berço o corpo e a voz alevantou:
"Portugal! Portugal!" alçando a mão
Disse "pelo Rei novo, Dom João."
....
Estes versos podem efectivamente não traduzir uma paixão de Camões pela astronomia-astrologia ou uma necessidade de procurar entender esses fenómenos, pode ser também e exclusivamente uma figura de estilo que traduz correctamente o pensamento da época, todavia, são demasiadas coincidências.
O mesmo se pode dizer, acerca da crença de que o destino está escrito nas estrelas, pejada na estrofe 81 do Canto IX de os Lusíadas, que a seguir se transcreve, ou nas estrofes 25 do Canto VIII sobre Dom Paio Correia e estrofe 29 do mesmo Canto sobre as Batalhas de Aljubarrota e Valverde.
Nesta esperança só te vou seguindo:
Que, ou tu não sofrerás o peso dela,
Ou na virtude de teu gesto lindo
Lhe mudarás a triste e dura estrela:
E se se lhe mudar, não vás fugindo,
Que Amor te ferirá, gentil donzela,
E tu me esperarás, se Amor te fere:
E se me esperas, não há mais que espere.
A insistência, na obra de Camões, na ideia de que o destino está escrito nas estrelas, poderá querer dizer que o seu autor acreditava nessa fatalidade, dando força à hipótese de que Camões estudou e procurou entender o firmamento.
A paixão pela Lua, na obra de Camões (Obras Completas) é muito clara, veja-se por exemplo o soneto CLXV, onde o apaixonado Endimião se dirige ao Sol, pedindo que se ocultasse para dar lugar à Lua que idolatra.
En una selva al dispuntar del dia
Estaba Endimion triste y lloroso,
Vuelto al rayo del sol, que presuroso
Por la falda de un monte descendia.
Mirando al turbador de su alegria,
Contrario de su bien y su reposo,
Tras un suspiro y otro, congojoso,
Razones semejantes le decia:
Luz clara, para mi las escura,
Que con esse paseo apresurado,
Mi sol con tu teniebla escureciste;
Si allà pueden moverte en esa altura
Las quejas de un pastor enamorado,
No tardes en volver á dó saliste.
Crê-se que o argumento mais forte, a favor da tese de que Camões era apaixonado pela astronomia/astrologia e observação dos céus é estatístico.
Num total de 351 sonetos pesquisados, a Lua é explicitamente referida em quatro. É também referida pelo menos numa canção e numa ode. No entanto, os planetas conhecidos na época são essencialmente referidos como tal nos Lusíadas.
Em Os Lusíadas, a Lua é referia explicitamente uma vez no Canto Primeiro, uma no Canto Segundo, duas vezes no Canto Terceiro e uma vez no Canto Nono.
Há que ler com atenção cada estrofe para se perceber quando os principais deuses greco-romanos são planetas ou figuras mitológicas. Camões usa frequentemente nos seus versos a duplicidade planeta-deus ou deus-planeta para compor poeticamente as estrofes da grande epopeia portuguesa.
Mercúrio (no sentido astronómico ou astrológico) é referido três vezes no Canto II nas estrofes 59, 60 e 61, e uma vez no Canto Décimo, na estrofe 89. Veremos Mercúrio ser referido exclusivamente como entidade mitológica, uma vez no Canto Primeiro, se nos abstrairmos das estrofes 20 e 21 do mesmo Canto onde se diz, referindo ao Concílio dos deuses:
Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
Onde o governo está da humana gente,
Se ajuntam em concílio glorioso
Sobre as cousas futuras do Oriente.
Pisando o cristalino Céu formoso,
Vêm pela Via-Láctea juntamente,
Convocados da parte do Tonante,
Pelo neto gentil do velho Atlante.
O céu cristalino é, no modelo ptolomaico a esfera das estrelas fixas, ou a última esfera celeste. O modelo do universo de Ptolomeu, vigente em toda a idade média e mesmo depois da chamada revolução coperniana que coloca o Sol no centro do Sistema Solar, no renascimento, era o modelo geocêntrico, impregnado de valores religiosos e da cultura grega clássica. Essa alusão ao “cristalino Céu formoso” é consentânea com o que se descreve a seguir estrofe 21 do Canto I, que refere explicitamente as sete esferas celestes do modelo geocêntrico clássico:
Deixam dos sete Céus o regimento,
Que do poder mais alto lhe foi dado,
Alto poder, que só co'o pensamento
Governa o Céu, a Terra, e o Mar irado.
Ali se acharam juntos num momento
Os que habitam o Arcturo congelado,
E os que o Austro tem, e as partes onde
A Aurora nasce, e o claro Sol se esconde.
São sete os céus de Ptolomeu: o primeiro da Lua, segundo de Mercúrio, terceiro de Vénus, quarto do Sol, quinto de Marte, sexto de Júpiter e sétimo de Saturno, a que se segue a esfera das estrelas fixas. Segundo Camões, esses deuses, saem das suas orbes, e caminham pela via Láctea até ao Olímpico, para intercederem pelos portugueses. Assim sendo, a referência a Mercúrio no Canto I, é tanto no sentido de planeta como no sentido mitológico, com diferenças das quatro vezes que é citado no Canto Segundo e a única vez que é citado no Canto Nono. Por outro lado, dá-se a entender que os deuses seguem o caminho das estrelas, a Via-Láctea, que actualmente sabemos tratar-se da nossa galáxia.
O planeta Vénus, é referido explicitamente, como planeta, ou como estrela da manhã ou grande estrela, no Canto Primeiro (estrofe 33), na estrofes 33, 34 e 35 do Canto Segundo, estrofe 85 do Canto Sexto, na estrofe 15 do Canto Sétimo, na estrofe 64 do Canto Oitavo e na estrofe 89 do Canto Décimo. Como deusa, Vénus é referida na estrofe 100 do Canto primeiro, em onze estrofes do Canto Segundo, na estrofe 106 do Canto Sexto e em onze estrofes do Canto Nono.
Na estrofe 33 do Canto I, Camões afirma:
Sustentava contra ele Vénus bela,
Afeiçoada à gente Lusitana,
Por quantas qualidades via nela
Da antiga tão amada sua Romana;
Nos fortes corações, na grande estrela,
Que mostraram na terra Tingitana,
E na língua, na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê que é a Latina.
Nessa estrofe, Vénus é a deusa romana do amor, cujas qualidades e virtudes se encontram associadas a “Nossa Senhora” na religião católica. Desde os babilónios que Vénus é uma deusa associada à estrela da noite ou da manhã. No verso “Nos fortes corações, na grande estrela” Camões atribui-lhe esse carácter. O planeta Vénus era conhecido desde os tempos pré-históricos, bem como os seus movimentos no céu, adquirindo importância em quase todas civilizações e interpretações astrológicas dos movimentos planetários. Por exemplo, a civilização maia elaborou um calendário religioso baseado nos ciclos de Vénus a quem chamavam de “Chak ek” (a grande estrela). A partir das observações de Vénus no céu era possível saber-se, em alto mar, o mês do ano em que os navegadores se encontravam. Assim sendo, Vénus foi um planeta que ajudou a guiar os portugueses nas suas descobertas.
Tantas referências a Vénus nos Lusíadas, tanto se pode dever ao facto do “amor” inspirar desmesuradamente os poetas, logo a recorrência constante de Camões à deusa do amor, ou, o mais pertinente, no sentido astronómico, como “estrela da manhã” que aconselha o rumo certo aos navegantes. Vénus aparece como estrela da manhã, antes do nascimento do Sol, indicando a direcção Este.
Quando a navegação estava centrada exclusivamente no Mediterrâneo era importantíssimo saber o sentido do oriente, de tal forma que quem não o encontrava ficava “desorientado” que actualmente significa extraviar-se, perder-se, desencaminhar-se ou aturdir-se.
O planeta Terra é explicitamente referido nas estrofes 1, 56 e 57 do Canto Segundo, na estrofe 19 do Canto Terceiro, na estrofe 51 do Canto Quinto e clara e objectivamente, na perspectiva física aristotélica, na estrofe 90 do Canto Décimo.
Em todos estes orbes, diferente
Curso verás, nuns grave e noutros leve;
Ora fogem do Centro longamente,
Ora da Terra estão caminho breve,
Bem como quis o Padre omnipotente,
Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,
Os quais verás que jazem mais a dentro
E tem co Mar a Terra por seu centro.
Na estrofe anterior, Camões descreve as órbitas dos vários planetas afirmando que uns têm órbitas esféricas maiores do que outros, com períodos de rotação em torno da Terra distintos (nuns grave, noutros leve). O sentido místico religioso, típico da época medieval está bem presente no verso “Bem como quis o Padre omnipotente” bem como os quatro elementos da teoria dos quatro elementos dos filósofos pré-socráticos, que defendiam que a origem da matéria era atribuída aos elementos fogo, água, terra e ar. Assume-se nessa estrofe o modelo geocêntrico do universo pois esses quatro elementos
“.. tem co Mar a Terra por seu centro”.
O planeta Marte, só é referido em Os Lusíadas, uma única vez como sendo um planeta, na estrofe 89 do Canto Décimo, todas as outras vezes é referido com deus da guerra ou como atributo dos guerreiros. Marte é referido, como entidade mitológica, em oito estrofes do Canto Primeiro, se bem que na estrofe referente à convocação do concílio dos deuses também Marte parte de um dos setes céus, conferindo-se-lhe assim um sentido planetário. O deus da guerra é referido em três estrofes do Canto Segundo, cinco estrofes do Canto Terceiro, duas estrofes do Canto Quarto, duas estrofes do Canto Sexto, duas estrofes do Canto Oitavo, numa estrofe do Canto Nono e em quatro estrofes do Canto Décimo.
Júpiter é referido, tanto como planeta “Num assento de estrelas cristalino” como uma figura mitológica “Estava o Padre ali sublime e dino” na estrofe 22 do Canto I. O mesmo se passa na estrofe 41 do mesmo Canto, quando o poeta afirma que Júpiter decide a favor dos portugueses “Pelo caminho Lácteo glorioso”, numa perspectiva astronómica, para logo lhe associar a perspectiva mitológica “Logo cada um dos Deuses se partiu”. A figura mitológica de Júpiter ainda aparece nas estrofes 23, 24, 27, 30 e 37 do Canto I.
No Canto II, estrofe 33, Júpiter volta a ser referido como planeta “Avante passa, e lá no sexto Céu”, pois de acordo com o modelo Ptolomaico, Júpiter ocupava a sexta esfera celeste, para de imediato lhe atribuir um sentido mitológico “Para onde estava o Padre, se moveu.”, referindo-o como o deus dos deuses. Esta figura mitológica ainda aparece nas estrofes 39, 42, 44, 46, 47, 48 e 56 do Canto II.
Na estrofe 106 do Canto III, Júpiter é referido de novo por Camões como o pai dos deuses “A Júpiter, seu pai, favor pedia”.
O deus dos deuses volta a ser referido na estrofe 51 do canto V, nas estrofes 48 e 54 do canto VII, na estrofe 8 do Canto VIII, na estrofe 91 do Canto XIX, e nas estrofes 7, 82 e 83 do Canto X. Na estrofe 89, Júpiter volta a ser referido como um planeta que se movimenta no grande firmamento:
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“Debaxo deste grande Firmamento,
Vês o céu de Saturno, Deus antigo;
Júpiter logo faz o movimento”
....
Na astrologia, Júpiter era o grande bondoso, representando a expansividade, a moral e a fortuna. Associado à autoconfiança e ao prestígio social, representava o impulso de benevolência e protecção. Ligado às oportunidades, à filosofia, à religião e aos estudos superiores, Júpiter favorecia todos os assuntos relativos ao estrangeiro e às viagens, bem como a ampliação de nossos conhecimentos e fortuna em todos os sentidos. É exactamente nesta perspectiva que Camões o introduz em “Os Lusíadas”, como bondoso, protector dos portugueses, relacionando-o com as viagens e a ampliação do conhecimento. No entanto não deixa de referi-lo como um astro do firmamento.
Neptuno, na astrologia está associado à psique, ao romantismo, ao sonho e à fantasia. Representa as nossas flutuações, desfavorecimentos, sacrifícios e inspiração artística.
Camões refere-o como figura mitológica nas estrofes 3 e 72 do Canto I. Depois da guerra entre os deuses, que destronou se pai, o mundo foi dividido. Coube a Neptuno o mundo dos mares. É nessa condição que Camões o refere na estrofe 72 do Canto I.
Nas estrofes 2 e 47 do Canto II, Neptuno volta a ser referido, sendo mais uma vez, na estrofe 47, o Senhor das águas:
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“Tremer dele Neptuno, de medroso
Sem vento suas águas encrespando.”
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Na estrofe 51 do Canto III, Neptuno aparece ferindo a terra:
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“Que Neptuno amostrou ferindo a terra.
Golpes se dão medonhos e forçosos”
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pois em termos mitológicos/astrológicos, a sua função era ter a supremacia dos oceanos, das ondas e das correntes, mas também provocar tempestades, abalar os rochedos e fazer brotar fontes de água, golpeando a terra com seu tridente.
Neptuno percorria o seu reino num carro puxado por cavalos brancos, sempre seguido pelas nereidas. É esta perspectiva que está presente na estrofe 21 do Canto IV. Neptuno ainda é referido na estrofe 84 do Canto IV como Senhor dos Mares “Co'o salgado Neptuno o doce Tejo” e nas estrofes 11, 15 e 51 do Canto V (Neptuno lá nas águas acendiam ou Banharem-se nas águas de Neptuno, ou A armada de Neptuno, que eu buscava., respectivamente).
O deus do mar, Neptuno, volta a ser referido por Camões na estrofe 8 do Canto VI, quando faz a descrição do seu reino. Refere-se também ao deus do mar nas estrofes 13, 14, 15, 16, 21, 35, 36 e 76 do Canto VI. O mesmo deus do mar aparece no Canto VIII na estrofe 32 e nunca é referido nos Cantos VII, IX e X.
De facto Camões não poderia associar Neptuno a um planeta porque até 1781 só eram conhecidos os planetas até Saturno. Assim sendo, Camões não poderia referir-se a Urano, Neptuno e Plutão como planetas, mas só como deuses.
Saturno, o deus antigo, como lhe chama Camões é referido como planeta na estrofe 89 do Canto X.
A Visão Cosmogónica de Camões
A visão Cosmogónica do autor é apresentada, principalmente, no último canto do poema, quando Tétis mostra a Vasco da Gama a Máquina do Mundo.
"Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfícia tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.”
A Máquina do Mundo, segundo Camões, roda em torno do planeta Terra, tal como se representa ainda em 1660 (ver na figura seguinte a representação artística do Universo de Johannes van Loon).
A descrição das órbitas dos andarilhos ou planetas, efectuada por Camões adequa-se perfeitamente à visão grega geocêntrica do universo tal como se referiu anteriormente.
Os filósofos gregos defendiam que, embora o mundo fosse formado por objectos distintos, havia algo de comum na matéria que os compunha. Essa lógica acaba por traduzir-se na teoria dos quatro elementos, que tenderiam, pela sua própria natureza a agrupar-se em esferas. Desta forma a esfera mais pesada ficaria no centro, uma esfera de terra. A esfera de terra no centro é o nosso planeta, a esfera de água continha os mares e os oceanos, a esfera de ar correspondia à esfera da atmosfera, e por fim a esfera de fogo correspondia ao Sol e às estrelas. O círculo de fogo (estrelas e sol) girava em torno dos outros círculos, que constituem o planeta Terra.
"Debaxo deste grande Firmamento,
Vês o céu de Saturno, Deus antigo;
Júpiter logo faz o movimento,
E Marte abaxo, bélico inimigo;
O claro Olho do céu, no quarto assento,
E Vénus, que os amores traz consigo;
Mercúrio, de eloquência soberana;
Com três rostos, debaxo vai Diana.
Na figura seguinte apresenta-se de forma esquemática a visão ptolomaica do universo.
No verso “Júpiter logo faz o movimento” da estrofe anterior, Camões quer referir-se aos epiciclos, do modelo ptolomaico que estão associados a Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno. É essa mesma ideia de epiciclo que leva Camões a afirmar que Júpiter se movimenta entre o quinto e sétimo céu.
Nuno Crato afirma que “é frequente perguntar-se qual seria a sua posição de Camões sobre Nicolau Copérnico (1473–1543), uma vez que a polémica entre os partidários do sistema heliocêntrico proposto por este astrónomo polaco e os defensores do sistema geocêntrico então aceite viria a marcar toda a cosmologia da época seguinte. A verdade, contudo, é que o trabalho de Copérnico veio a lume em 1543 e apenas meia dúzia de astrónomos da época o leram e discutiram. Pedro Nunes, um dos grandes sábios portugueses da época de Camões por exemplo, refere-se-lhe marginalmente em algumas passagens das suas obras, mas sempre como hipótese geométrica explicativa do movimento dos astros.”
Nesse contexto, era muito pouco provável que Camões se assumisse como defensor da teoria heliocêntrica, uma vez que não era astrónomo, ou até mesmo que a essa teoria se referisse, no entanto tinha um conhecimento prático da astronomia ou da observação dos céus dado que se refere às constelações e estrelas difíceis de identificar por tradicionais homens de “letras”. Era costume desde pelo menos os gregos, e tal tradição manteve-se até hoje, agrupar as estrelas da abóbada celeste em figuras com nomes de animais, objectos ou heróis. Veja-se o brilhantismo com que Camões descreve constelações do hemisfério celestial Norte e Sul (estrofe 88 do Canto X):
"Olha por outras partes a pintura
Que as Estrelas fulgentes vão fazendo:
Olha a Carreta, atenta a Cinosura,
Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo;
Vê de Cassiopeia a fermosura
E do Orionte o gesto turbulento;
Olha o Cisne morrendo que suspira,
A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.”
Uma vez que as posições relativas das estrelas se mantêm no firmamento por muitos séculos, pode-se afirmar que as constelações que Camões refere em “Os Lusíados”, são as mesmas que ainda hoje observamos. Quem na actualidade consegue identificar a Carreta, Cinosura, Andrómeda, Cefeu, Cassiopeia, Drago, Orionte, Cisne, Lebre, Nau ou Lira?
A Carreta era o nome atribuído à época à Ursa Maior ou Úrsula Maior, por ter uma forma de Carro, enquanto que a Cinosura é a Ursa Menor. De facto, a Ursa Maior aponta para a Ursa menor, como se pode observar na figura seguinte.
A princesa mitológica Andrómeda, é uma constelação do Hemisfério Celestial Norte. As três estrelas mais brilhantes dessa constelação boreal são Sirrah (alfa), Mirach (beta) e Almak (gama). Estão quase em linha recta e equidistantes e encontram-se no prolongamento do quadrado de Pégaso.
Mitologicamente, o pai de Andrómeda é Cefeu. Cefeu é também uma constelação do Hemisfério Celestial Norte sendo a estrela alfa de Cefeu, Alderamin, a mais brilhante. As constelações vizinhas de Cefeu são a Úrsula Menor, Dragão, Cisne e Cassiopeia. Camões conhece essa proximidade e cita-as, todas elas, na estrofe anterior.
Orionte tem sido objecto de admiração ao longo de todos os tempos. Esta constelação, conjuntamente com a Úrsula Maior e as Plêiades, é das constelações com referências mais antigas. Com excepção da "Carreta" - Úrsula Maior, o "cinturão de Orionte" é provavelmente o mais conhecido e o mais popular de todos os grupos estelares. Popularmente chamam a essa grupo de três estrelas "as três Marias" ou "os três Reis Magos". Nos catálogos antigos, Orionte é representada por um caçador brandindo um maço (como lhe chama Camões – gesto turbulento”), enfrentando o Touro celeste. Tem aos pés a Lebre e seguem-nos o Cão Maior e o Cão Menor.
No Hemisfério Celestial Norte é ainda possível observar as constelações de Cisne e de Lira que Camões refere na estrofe anterior e esquematizadas nas figuras seguintes. No entanto, a Lebre, é uma constelação do Hemisfério Celestial Sul, logo ao sul do equador celeste.
O verso “Olha o Cisne morrendo que suspira” tem também sentido mitológico, onde Camões junta, como é hábito, as duas vertentes: a astronómica e a mitológica. Por outro lado, é a forma poética que encontra para falar da constelação de Gémeos. Para melhor se entender essa assumpção, atenda-se à história da princesa Leda.
Leda era uma jovem e bela princesa, recém-casada com Tíndaro, herdeiro do reino de Esparta. Gostava de deitar-se na relva, apreciando o canto dos pássaros e expunha o seu corpo aos raios do sol, sob olhares indiscretos dos deuses.
Certa vez, Zeus ia a caminho da cidade de Tróia e encontrou Leda deitada seminua na relva e parou para contemplá-la de longe. Temendo assustá-la com sua figura gloriosa e resplandecente, converteu-se num cisne imenso para poder cortejá-la.
Ao ver o belo cisne, Leda senta-se e começa a observá-lo. O Cisne mostra grande excitação e desejo, através de uma dança. Leda estava fascinada e o cisne aproximou-se mais e começou a tocá-la e acariciá-la com as suas plumas e o seu longo pescoço.
Excitada, Leda deitou-se novamente na relva e aguardou que o cisne se deitasse sobre ela, para se amarem.
Alguns meses depois a princesa sente fortes dores e percebe que do seu ventre saíam dois ovos: do primeiro, nasceram Castor e Helena e do segundo, Pólux e Clitemnestra. Hera, irmã e esposa de Zeus, com ciúmes, persegue e proíbe Leda de viver no reino. Zeus para compensar Leda, converteu-a em deusa e reservou-lhe um espaço no céu, na forma de uma estrela na constelação de Cisne.
Os filhos de Leda e Zeus, Castor e Pólux, tornam-se grandes guerreiros e amigos inseparáveis. Todavia Castor, que herdou a mortalidade humana da mãe, perde a vida numa batalha e Pólux, que herdou a imortalidade divina do pai, suplica a Zeus que devolva a vida do seu irmão. Comovido com esta demonstração de amor fraterno, Zeus propõe a Pólux dividir sua imortalidade, alternando com o irmão um dia de vida e um dia de morte.
Representação das constelações do Cisne e Lira
Representação das constelações de Gémeos e Lira
A Nau, referida por Camões é provavelmente constelação do Navio, e na idade média chamada de Argos, referida, crê-se que pela primeira vez, no Almagesto de Claudio Ptolomeu (127-145 d.C.) naquele que é um dos mais importantes catálogos estelares, uma fabulosa obra composta por 13 volumes e onde estão referidas 1022 estrelas de 48 constelações distintas, sendo 12 zodiacais, 21 ao Norte e 15 ao Sul, inclusive as quatro estrelas principais do Cruzeiro do Sul, na época pertencentes à constelação do Centauro. Essa possibilidade torna-se mais pertinente, porque Camões sabe-o, pois escreve na estrofe 85 do Canto IV:
“Elas prometem, vendo os mares largos,
De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos”
Mitologicamente a Nau Argos foi posta entre as constelações por Minerva, conhecedor da mitologia grega como era, Camões teria certamente conhecimento desse facto.
Representação das constelações do Navio, Cães, Lebre e Orionte.
Assim, quando Camões canta o firmamento, já muitas das constelações eram conhecidas, todavia conhecê-las quase todas e bem, exigiria um conhecimento profundo dos céus. O mais assombroso é que numa só estrofe (a estrofe 88 do Canto X) Camões refere directa e indirectamente quinze constelações : Carreta (Úrsula Maior), Cinosura (Úrsula Menor), Andrómeda, Cefeu (seu pai), Dragão (Drago), Cassiopeia, Orionte, Touro (direcção do gesto turbulento de Orionte), Cisne, Gémeos (Cisne morrendo que suspira), Lebre, Cão Maior, Cão Menor (os Cães), Argo Navis (Nau) - actualmente dividido em Quilha, Popa e Vela, e Lira.
Porquê chamar à constelação do Dragão, Drago horrendo, quando todas as outras menções revelam harmonia? Tal pode tanto dever-se as aspectos mitológicos, como a aspectos astrológicos. Em Camões, tal como referido anteriormente, estes aspectos andam misturados.
Para comemorar o casamento de Zeus com Hera, Gaia, a Mãe-Terra, ofereceu à rainha dos deuses uma macieira que produzia frutos de ouro. Não sabendo onde guardar tão precioso presente, Hera decidiu plantá-lo no Jardim das Hespérides (as Ninfas do Poente), o lugar mais distante do mundo (segundo a então geografia grega), no noroeste de África. A deusa percebeu que as ninfas não poderiam proteger sozinhas a macieira sagrada, decidindo pô-la a guardar também o dragão Ládon, filho de Tífon e Équidna.
Como último de seus Doze Trabalhos, o herói Héracles foi enviado para colher as maçãs divinas. Mas, não tendo conseguido derrotar o dragão, Héracles contou com a ajuda do Titã Atlas, que matou Ládon e trouxe as maçãs para Héracles.
Zeus elevou o dragão ao céu, transformando-o numa constelação. Para Héracles, também depois de morto, foi criada uma constelação com seu nome, postada diante do Dragão, ajoelhado frente a ele e ameaçando-o com a clava (como que a golpeá-lo). O Drago horrendo de Camões poderá estar relacionado com esta lenda grega. Se assim for, na estrofe anteriormente referida, Camões também se refere indirectamente à Constelação de Hércules.
A constelação de Hércules é uma extensa constelação a Oeste de Lira.
Nas culturas ancestrais, o Sol é representado de muitas maneiras, personificando um pastor, um guerreiro, um caçador, um cavalo ou uma águia. Por outro lado, a escuridão, o inimigo do Sol, pode tomar a figura de um enorme dragão, de uma serpente ou de um escorpião. Assim, o Dragão era visto como um ser horrendo, capaz de devorar o Sol ou a Lua, tal explicava os seus eclipses.
Imagem que se segue, de 1540, é de um disco móvel que fornece as regras para predizer os eclipses do Sol e da Lua.
No dispositivo representado na figura seguinte, um dos discos contém um dragão de múltiplas cabeças e um eclipse parcial do Sol. Essa imagem é extraída do Astronomicum caesareum, de Petrus Apianus, publicado em 1540 pelo Observatório de Paris.
No contexto da estrofe 88 do Canto X, não se crê que Camões se refira à constelação do Dragão como Drago horrendo, sem qualquer sentido astronómico: indicar a constelação de Hércules ou referir a existência de fenómenos astronómicos como os eclipses do Sol e da Lua.
Não é só no Canto X, com a descrição das órbitas dos planetas ou das constelações dos dois hemisférios celestiais que Camões revela o seu domínio da astronomia. “Os Lusíadas”, estão, como afirma Nuno Crato, salpicados de referências eruditas, mas saborosas.
A maneira de nuvens se começam
A descobrir os montes que enxergamos;
As âncoras pesadas se adereçam;
As velas, já chegados, amainamos.
E para que mais certas se conheçam
As partes tão remotas onde estamos,
Pelo novo instrumento do Astrolábio,
Invenção de subtil juízo e sábio.
É quase impossível ler e compreender as múltiplas referências astronómicas de Camões nos Lusíadas sem perceber um pouco de astronomia medieval. E seria impossível a Camões escrever o que escreveu se não tivesse um domínio muito completo da difícil cosmologia da época. Tal como é típico, no Renascimento, Camões convocou para a sua obra todo o conhecimento quer científico quer erudito.
A doutrina de Ptolomeu, que Camões convoca para a sua obra não foi uma pura fantasia, foi uma verdadeira teoria científica, que se prestava admiravelmente aos cálculos astronómicos e se manteve enquanto esteve de acordo com os resultados da observação. Esta só foi abandonada com os “aperfeiçoamentos de Copérnico, Keppler e Newton cujos trabalhos marcaram as transformações sucessivas da ciência astronómica. Assim, a astronomia presente em Os Lusíadas ou na Obra de Camões representa a ciência do seu tempo, que Camões adquiriu com o seu «honesto estudo».
As indicações astronómicas são sempre feitas pelo poeta numa forma bela e concisa, e com perfeito rigor.
Ia descuberto tinhamos diante
La no novo Hemisperio nova estrella,
Não vista de outra gente, que ignorante
Alguns tempos esteve incerta della:
Os versos anteriores relatam o reconhecimento do Cruzeiro do Sul. A descoberta desta constelação e do seu uso náutico revela o saber dos nossos marinheiros. Camões enaltece este honroso facto, que importa tornar bem conhecido.
Na estrofe 15 do Canto V, diz Camões:
Assi, passando aquelas regiões
Por onde duas vezes passa Apolo,
Dous invernos fazendo e dous verões,
Em quanto corre dum ao outro Pólo,
Por calmas, por tormentas e opressões,
Que sempre faz no mar o irado Eolo,
Vimos as Ursas, a pesar de Juno,
Banharem-se nas águas de Neptuno.
“Quando se viaja para Sul, estas constelações vão-se aproximando do horizonte, mergulhando progressivamente no mar, até se tornarem invisíveis. É esse o fenómeno que Camões descreve e que se ilustra na imagem seguinte.
A partir do equador, todas as estrelas da constelação da Ursa Maior ou Ursa Menor mergulham no horizonte, embora todas tenham ocaso e nascimento. Mas a partir de que latitude Sul se deixa de ver a Ursa Maior? Na estrofe seguinte (estrofe 72 do Canto VIII), Camões refere os povos que nunca as sete flamas viram, referindo-se às sete estrelas que compõe a Ursa Maior ou às setes estrelas que compõe a Ursa menor.
Crescendo cos sucessos bons primeiros
No peito as ousadias, descobriram,
Pouco e pouco, caminhos estrangeiros,
Que, uns sucedendo aos outros, prosseguiram.
De África os moradores derradeiros,
Austrais, que nunca as Sete Flamas viram,
Foram vistos de nós, atrás deixando
Quantos estão os Trópicos queimando.
A partir de 30ºS (antes mesmo de passar o cabo da Boa Esperança), algumas das estrelas da constelação de Ursa Maior já são invisíveis e as restantes erguem-se muito pouco acima do horizonte, deixando a constelação de poder ser identificada. Esse facto trás consigo um novo problema para a navegação, pois é possível desde então perder-se o Norte. O termo desnorteado por vezes tem o mesmo significado que desorientado, todavia, tem é usado para dar um sentido mais profundo ao conceito de perdido. Esse termo surge associado à dificuldade de navegar sem ter o norte como referência.
Com a navegação no hemisfério Sul, tanto se deixavam de ver as ursas, como também Arcturo, a brilhante estrela da constelação de Boieiro que estava de guarda às ursas para que não se afastassem do gélido pólo. O vocábulo «Árctico», que significa «norte», e Arcturo têm a mesma origem grega. A referência ao Árctico, através da estrela Arcturo é feita num verso da estrofe 21 do Canto I: “Os que habitam o Arcturo congelado”.
Camões também usa outros artifícios para se referir ao pólo Norte, referindo por exemplo Calisto (estrofe 51 do Canto I), que não é mais do que a constelação da Ursa Maior, em vez de Árctico ou pólo Norte.
Do mar temos corrido e navegado
Toda a parte do Antártico e Calisto,
Toda a costa Africana rodeado,
Diversos céus e terras temos visto;
Dum Rei potente somos, tão amado,
Tão querido de todos, e benquisto,
Que não no largo mar, com leda fronte,
Mas no lago entraremos de Aqueronte.
Na mitologia grega, Calisto era filha do Rei da Arcádia, tendo sido eleita quando ainda era criança, para ser umas das companheiras de Artemis. Artemis era irmã de Apolo, padroeira do nascimento e protectora dos recém-nascidos e mamíferos. Quando Artemis descobriu que Calisto estava grávida de Zeus, vingou-se dela. Como adorava caçar; transformou-a numa Ursa e perseguiu-a, daí a associação entre a Ursa Maior e Calisto.
Quanto mais se lê Os Lusíadas, mais se aprende a amá-los e a respeitá-los, bem como ao seu autor que transparece como sábio e iluminado. Os Lusíadas São uma epopeia, uma obra de astronomia medieval e uma escrita-poesia singular.