Os amigos que perdi
Deambulava pelas ruas da cidade com uma barba comprida e suja que chegava a confundir-se com a vassoura do Município.
Estava velho, mais velho que o efeito do tempo que passara sobre ele.
Estava velho, mais velho que o efeito do tempo que passara sobre ele.
Outrora, sentava-se nos degrais da escola cheio de certezas, dando a entender que nenhuma droga seria capaz de o derrubar.
Este foi o Francisco.
.
Rondava as portas das discotecas escondendo-se na própria sombra ou nas sombras disformes da Lua. A estratégia de caça era semelhante à do Leopardo, mas já não tinha garras para segurar qualquer presa.
Ouvi-o tantas vezes gabar-se dos seus atributos físicos, e vi-o a assentar a sua vida, na beleza narcisista que possuía.
Já não encontra homens ou mulheres capazes de o sustentar.
Este foi o José.
.
Ria-se para os cartazes da cidade, os pombos pousados nas estátuas e as pedras da calçada, ou talvez fossem essas coisas que se riam dele. O estômago teimava em entrar em sintonia com o Atomium Belga, e o hálito, em ser um anestésico de bloco operatório.
Divertia-nos com a sua visão do Mundo, e garantia-nos que ficava mais apurada, com dois ou três copos de chá de cevada fermentada.
Este foi o João.
.
Sonhava ainda ser rico e bafejado pela sorte. Por isso, continuava a apostar na lotaria e nas slot machines. Se ganhasse, já poderia substituir o casaco e as calças puídas e descoloradas que quase se equilibravam por si próprias. A sua entrada nas casas de jogo estava proibida, em nome dos calotes que lá deixara.
Costumava apostar que a professora de geografia faltaria às aulas naquele dia. Quase sempre acertava. Fez das apostas o seu ganha-pão.
Este foi o António.
.
Encontrei-o quando me levava o rádio velho do carro. Apesar de manco, ainda sabia saltar muros.
Achava que a vida era fácil e que todos lhe deviam qualquer coisa. Por ter que aturar a professora de matemática, compensava-se com a carteira dela, para ter que saber a constituição das células tinha que assimilar a sabedoria contida na esferográfica da professora de biologia, e para ter que ouvir a poesia de Camões, tinha de adquirir os walkman do professor de Português.
A polícia entendia que esses direitos estavam directamente associados ao dever de ver o Sol aos quadradinhos.
Este foi o Manuel.
.
É tão simples perder um amigo! Por vezes, basta não concordar com ele.
Félix Rodrigues
.
Qual a maior discordância que tem com os seus amigos?
.